24.10.2009 - Eu quero ficar sozinho.
Reportagem da revista ISTOË, ediç:äo de outubo 2009 .
No lugar das tradicionais e efusivas discussões familiares, o jantar é marcado pelo tilintar de apenas um par de talheres. Em vez de crianças eufóricas correndo pela casa, os corredores estão vazios e silenciosos. Antes de dormir, não há companhia para ver tevê. A tendência é mundial. Cada vez mais homens e mulheres moram sozinhos. Na Inglaterra, o índice de domicílios habitados por uma única pessoa é de 30%. Nos Estados Unidos, alcança os 25% - em Nova York, a meca dos solteiros, mais da metade da população (50,6%) vive só. No Brasil, o número de indivíduos que moram sem companhia também aumenta a cada ano. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2008, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 11,6% dos brasileiros não dividem o teto com ninguém. Há dez anos, esse índice era de 8,4%.
Até recentemente, o "morar só" era inevitavelmente relacionado a "ser só". E essas pessoas, geralmente com problemas de relacionamento ou idosos, carregavam o estigma de isoladas e abandonadas. Hoje, essa condição virou um estilo de vida, graças a um boom de jovens que têm deixado a casa dos pais em busca das tão almejadas liberdade e autonomia. Segundo uma corrente de cientistas sociais com voz cada vez mais ativa, quem mora sozinho é menos solitário do que se supunha e desfruta da vida em comunidade. "Muitos são jovens independentes, que consideram isso uma conquista", diz o sociólogo e cientista político Antonio Flávio Testa, professor da Universidade de Brasília (UnB). "Eles batalharam para ter seu canto e não se sentem sozinhos porque têm o apoio de familiares e amigos."
Rotina A vida agitada das grandes cidades contribui para o desejo das pessoas de se isolar
A tendência começou a ser moldada há duas décadas na Europa. Naquela época, os países desenvolvidos registravam um aumento significativo na expectativa de vida de seus cidadãos. Com isso, os idosos passaram a ter uma vida autônoma. Na maioria das vezes, eram senhores (as) viúvos (as). O perfil desse morador está se transformando, especialmente nos grandes centros urbanos, onde é comum ver jovens independentes partindo para uma vida solo. Não é, necessariamente, uma condição definitiva.
Ao encontrar um parceiro, eles deixam para trás os dias de egoísmo, as vantagens de não ter de dar satisfação a ninguém e o conforto de ter uma casa só deles para dividir o espaço das escovas de dente e constituir família. No Brasil, a maioria dos moradores solitários continua sendo a população mais velha - 40% têm mais de 60 anos. Mas as faixas etárias mais jovens estão ganhando espaço: 11,4% deles têm entre 20 e 29 anos e 13,2%, entre 30 e 39 anos. "O ato de morar sozinho, que outrora evocava debates sobre solidão, começa a ser associado a melhores condições de vida", analisa a socióloga Ana Lúcia Sabóia, do IBGE.
O empresário Célio Ashcar Jr. é um representante desta tendência. Aos 33 anos, ele vive só e feliz num apartamento no bairro da Vila Olímpia, zona sul de São Paulo. Até 2003, morava com o pai. Assim que se tornou sóciodiretor da agência de promoção e eventos na qual trabalhava, se sentiu seguro para partir para morar só. "Minha casa é meu templo, onde recarrego as energias e pesquiso referências para o meu trabalho", diz ele. Ashcar adora sua rotina, especialmente pela liberdade que conquistou. "Não tenho horário para chegar em casa, por isso seria impossível comparecer a jantares com hora marcada", diz.
Com uma maior inserção no mercado de trabalho, o contingente feminino também conquistou sua independência. Até alguns anos atrás, a mulher que morava sozinha era estigmatizada, carregava a pecha de mal-amada ou abandonada. "Hoje, aceitamos melhor quem faz essa opção", diz Henriette Morato, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). "É preciso se descobrir e curtir, antes de casar e engravidar. É uma fase muito importante."
A secretáriaexecutiva Juliana Melo, 29 anos, tem essa consciência. Aproveita a vida de solteira sem amarras e cuida da sua casa com prazer. Juliana deixou a casa dos pais para morar com amigas, há dez anos. Há um ano e meio, vive só num apartamento no bairro do Itaim, em São Paulo - a algumas quadras de seu trabalho. Isso lhe permite caminhar até lá, o que numa metrópole significa qualidade de vida. "Considero ter meu próprio espaço uma vitória", diz ela.
De olho neste filão, as empresas investem no mercado single, como é chamado este nicho, sobretudo os setores de alimentos, imóveis e serviços. Até recentemente, os solteiros viam produtos estragar nas geladeiras, porque eram obrigados a comprar quantidades além do que seriam capazes de consumir. Hoje, é possível encontrar nas gôndolas de supermercados itens voltados para eles. São frutas, verduras e legumes lavados, cortados e dispostos em pequenas quantidades, caixas de ovos com seis unidades, porções de torradas embaladas duas em duas e pratos individuais congelados. Segundo a Associação Brasileira das Indústrias Alimentícias (Abia), o mercado single de alimentos começou a ser estimulado há uma década e, desde então, cresce de 6% a 7% ao ano.
Na área imobiliária, proliferam empreendimentos com serviços especiais. Em São Paulo, a Construtora Gafisa está erguendo o edifício Vision, no bairro do Campo Belo, que possui concierge, para quem não gosta ou não tem tempo de arrumar o apartamento, e serviços "pay-per-use", que oferecem "babá de cachorros", por exemplo, para quem está disposto a pagar uma taxa extra. O sucesso foi tanto que a empresa se prepara para lançar em breve um segundo empreendimento como esse.
A vida agitada das metrópoles contribui para o desejo das pessoas de ficarem sós, de curtirem o silêncio de suas casas, de lidarem com os afazeres do seu próprio jeito. A psicóloga Henriette Morato acredita que é o excesso de relações pessoais que temos no dia a dia que exige um tempo para reavaliações. "Desde que acordamos, nos relacionamos com muita gente por obrigação, seja no elevador do prédio, seja na academia, no trabalho ou na faculdade", diz. "São todos contatos muito fluidos, que exigem de nós um tempo para digerí-los e assimilá-los até mesmo para nos reconhecer como indivíduos ou cidadãos." Segundo ela, o momento de solidão funciona como um mecanismo de defesa da pessoa, para que ela não se sinta diluída em meio a tanta informação e influência externa.
Os grandes centros urbanos sempre foram considerados os maiores vilões das relações interpessoais. Mas, agora, há uma corrente de pensadores que sustenta o oposto. Liderados pelo psicólogo americano John Cacioppo, diretor do Centro de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade de Chicago e autor de uma série de estudos sobre o tema, um grupo de acadêmicos tem defendido que metrópoles do porte de Nova York, Tóquio e São Paulo não contribuem para o distanciamento de seus moradores. Pelo contrário, estimulam a vida em comunidade, graças à sua efervescência. "Não é o número de ssrelações pessoais, mas a qualidade delas, que determina se uma pessoa se sente ou não sozinha", disse Cacioppo à IstoÉ. "Então, não é o tamanho das cidades que importa, mas a maneira como cada um se relaciona com a sua vizinhança - e isso vai depender da personalidade de cada um."
Para defender esta tese, Cacioppo usa seu estudo de caso sobre a Grand Central Terminal, estação que integra trens metropolitanos e metrô em Nova York e é o maior terminal de trem do mundo em número de plataformas. Ele argumenta que a sensação ao chegar ao local é de que pessoas se deslocam solitárias na multidão. Como se cada uma seguisse seu caminho, no seu ritmo, com os seus pensamentos e alheia aos demais. No entanto, ao olharmos com mais atenção, percebemos interação entre elas. Há turistas pedindo para nova-iorquinos tirar fotos deles, amigos se encontrando, outros se despedindo. Para o psicólogo, que integra uma corrente evolucionista e acaba de publicar o estudo "Loneliness" (Solidão), nossa espécie não teria sobrevivido por tanto tempo sem o que chama de "instinto de cooperação social".
A pesquisa The American Sociological Review revela que, em 1985, os americanos tinham em média três pessoas a quem podiam confiar sua intimidade. Em 2004, esse número caiu para dois indivíduos. O trabalho mostra ainda que, nesse período, o total de americanos sem alguém para abrir o coração subiu de 10% para um quarto da população.
Há pessoas que se sentem sozinhas cercadas por uma multidão e as que ficam à vontade até mesmo na aridez de um deserto - e aí, quase não faz diferença se a pessoa divide ou não o mesmo teto com alguém. "A solidão não é uma condição, é um sentimento", diz a psicóloga Magda Maetta. "Ela é vivida por cada um de maneira particular." O psicanalista e doutor em psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Sergio Cwaigman Prestes afirma que a dificuldade em ficar sozinho pode estar relacionada a conflitos de personalidade. "Geralmente, são pessoas que não aceitam alguma característica sua", diz.
RAIZ Viver sozinho é uma tendência que começou a ser moldada há 20 anos na Europa
A solidão traz sérios riscos à saúde de quem sofre seus dissabores. De alguns anos para cá, uma série de estudos vem sendo publicada sobre o sentimento e suas consequências mentais e físicas (leia quadro). O mais recente deles, realizado pela Universidade de Cornell (EUA) e divulgado em março, revela que idosos solitários apresentam mais problemas mentais e físicos do que velhinhos que têm companhia. Pessoas nessas condições desenvolvem baixa autoestima, que pode virar depressão. Além disso, idosos desacompanhados correm mais risco de sofrer quedas ou de esquecer de tomar sua medicação.
Outro estudo, de fevereiro, compara os males da solidão com os relacionados à obesidade e ao fumo. Nesse caso, os riscos em comum são pressão alta, imunidade baixa e insônia. O sentimento também dificulta a cura do câncer. Viver só não significa estar condenado à solidão. O saudável é equilibrar os momentos de isolamento e reclusão com os de interação com a família e amigos. Assim, é possível ser feliz sozinho. (fim)