02.06.2009 - Entrevista com o arcebispo de Lima
Por Carmen Elena Villa
CIDADE DO VATICANO- Com grande preocupação, o cardeal Juan Luis Cipriani, arcebispo de Lima, expressou suas opiniões sobre o relativismo moral que se vive na América Latina e que atinge a Igreja tanto dentro como fora.
No diálogo com Zenit, ao concluir a visita ad limina apostolorum, que os bispos peruanos realizaram à cidade de Roma, o purpurado se referiu a temas como a verdadeira vocação do sacerdote e a identidade dos institutos católicos.
Também compartilhou como foram estes dez anos de serviço episcopal na arquidiocese de Lima.
– Compartilhe conosco a experiência do encontro que os bispos do Peru tiveram com o Papa Bento XVI no dia 18 de maio.
– Cardeal Juan Cipriani: No Papa encontramos, como sempre, uma grande alegria, uma paz muito grande. Para mim, uma das coisas mais impressionantes é como ele nos confirma na beleza da mensagem de Cristo. Ser claros ao anunciar Cristo tem uma beleza e um entusiasmo que o Papa, nessa juventude de seu espírito, transmitiu-nos. É um pai com um espírito e um entusiasmo muito fresco, apesar de que acabava de voltar da Terra Santa.
– Está por concluir o ano paulino e os bispos do Peru tiveram a oportunidade de celebrar uma Eucaristia na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, em Roma. Que ensinamentos o Apóstolo dos Povos pode dar ao mundo de hoje?
– Cardeal Juan Luis Cipriani: São Paulo é um homem cuja credibilidade está em função de seu martírio. Ele cresce entre os gentios e é uma das colunas da Igreja.
Creio que o que hoje está faltando na Igreja é o martírio da fé, esse ter a audácia e a coragem de viver uma fé que nos leva a morrer aos caprichos pessoais, à soberba pessoal, à sensualidade. Deve nos levar a morrer a esse complexo do relativismo que quer que todas as posições sejam iguais e é preciso vencê-lo. Leva-nos a ter a audácia de propor Cristo vivo e, portanto, viver esse respeito e reverência ao Corpo de Cristo na Eucaristia, recebendo-o de maneira respeitosa, e deixar de lado posições um pouco tíbias e temerosas, que estão fazendo em grandes grupos da Igreja um enorme problema de tibieza, ou seja, a religião como um menu segundo o gosto do consumidor ou como uma ONG preocupada de melhorar o ambiente.
Falta-nos o sabor que imprime uma Teresa de Calcutá, um Josemaría Escrivá ou, é claro, um São Paulo. É o caminho do martírio, o caminho da contemplação. Se deixamos de lado a contemplação, essa experiência de encontro com Cristo à qual Bento XVI nos convida em sua primeira encíclica, para realmente ver com os olhos de Cristo, falar com suas palavras, sofrer com seu sofrimento, se deixamos de lado o martírio e a contemplação, ficamos sem ressurreição, então a alegria desta fé passa a ser o peso das contradições, o caminho da negociação. Finalmente, a mensagem cristã se dissolve em um simples convite à boa vontade de alguns.
Creio que o Papa Bento XVI, como João Paulo II, ambos de diferentes modos, estão convidando todos – cardeais, bispos, sacerdotes, religiosos e, é claro, leigos – a não terem medo a lançar-nos a esse martírio da cruz: a cruz do que não tem medo de afirmar a verdade no trabalho, na política, na economia; o martírio que supõe que o sacerdote celebre a missa respeitando as normas do magistério, que os religiosos, cheios de entusiasmo, leiam uma e mil vezes a vida de seus santos fundadores e não tenham temor dessa entrega sem limites: “Não sou eu quem vivo, é Cristo que vive em mim”. (Gál 2, 20).
Por isso, São Paulo nos leva a uma proposta de conversão que para mim é um convite que tomara que tenhamos a coragem de assumir, porque já estamos bastante satisfeitos de palavras bonitas: precisamos de santos, que caminhando pelas ruas e dirigindo suas famílias, trabalhando nos ofícios mais humildes ou sendo grandes economistas ou políticos, irradiem uma luz tão forte, seu sal seja de tal sabor, que voltemos a ver essa primavera da qual nos falava João Paulo II, de lares, de escolas. Não é uma utopia, é uma possibilidade ao alcance da santidade. Se não tomarmos a decisão de ser santos, não entenderemos a mensagem de São Paulo.
– Sobre esse relativismo, essa tibieza da qual nos fala: como o senhor vê isso concretamente na América Latina?
– Cardeal Juan Luis Cipriani: Fala-se tanto dos direitos humanos, mas logo depois encontramos aquelas crianças mal nutridas, mal acolhidas por seus pais, que não têm o lar que devem ter, aquela escola que não dá o calor, o respeito e o testemunho dos professores. Isso está limitando enormemente os direitos humanos desses jovens e dessas crianças. A legislação deveria respeitar estas crianças, apoiando as famílias numerosas, dando possibilidades de acesso às mães de família quando têm mais filhos, e dessa maneira encontraríamos menos essa enorme quantidade de filhos naturais.
Outra maneira bem concreta são os seminários. Nos seminários penso que se estão dando passos interessantes, mas é preciso continuar tendo a coragem de que estes jovens, que estão se preparando para ser outros Cristos, possam ter o sabor do que é um bom momento de oração diante do Santíssimo, do que são horas de estudo bem programadas, do que é essa autodisciplina para saber distinguir o que é a pornografia na televisão, na Internet, no sistema de mensagens, e assim poder ser pessoas maduras, que saem a serviço dos demais, tendo tido essa liberdade e essa experiência de contemplação e dessas horas de estudo com seriedade. Deve-se promover neles personalidades humanas maduras, que não estejam escondidas, mas que amadureceram para dar-se aos demais e deste modo não sairão às ruas com essa superficialidade na qual falta maturidade de seus afetos, que depois lhes gerará problemas.
Em qualquer ambiente que toquemos, poderíamos falar da política. A política deve ser mais coerente com a verdade. Esta crise financeira internacional, como vimos, deve-se principalmente a uma desconfiança por falta de ética e de moral, por abuso. É necessário respeito pelas normas jurídicas, políticas, não abusar da posição que se tem. Evidentemente, todas estas estruturas que tentam unir-nos mais seriam úteis, mas o que fazemos com algumas Nações Unidas de pura estrutura econômica vazias de conteúdo ético e moral? E com todas essas organizações internacionais que, buscando unicamente negociações puramente externas, não pretendem criar um clima de uma maior formação moral, espiritual, ética? A tibieza invadiu o sistema mundial e essa tibieza gera espíritos indecisos. Deste modo, os negociadores da armadilha e da mentira, os poderosos da corrupção, têm êxito. É forte o que digo, mas não creio que o espaço onde estamos tenha um remédio fácil. Creio que temos de aplicar-lhe um remédio mais forte.
– Os problemas que o senhor menciona, como acha que tocam a realidade eclesial na América Latina?
– Cardeal Juan Luis Cipriani: Eu penso que há algo que está muito dentro do ser humano: o afã de ostentação, a vaidade. Quando o responsável, seja ele sacerdote ou bispo, ao invés de ser um servidor, um tapete para que seus irmãos pisem, o último dos servidores..., pensa que o cargo que possui lhe permite alguns benefícios, algumas comodidades; então, lamentavelmente, essa escola de vaidade, de superficialidade, converte-se em um caminho que não funciona. Muitas vezes se vê que quem está à frente de uma instituição ou responsabilidade, mais do que servir os demais, serve-se deles. Penso que muitas vezes estas ações têm uma etiqueta de ajuda ao próximo, mas por trás têm um conteúdo ideológico-político, como qualquer outra alternativa de outro grupo.
Nós, sacerdotes, não podemos servir-nos da Igreja para fazer um teatro e depois deixar a Igreja muito mal, com uma hipocrisia e um cinismo que realmente vai sendo cada dia mais pavoroso. Isso se conserta com um pouquinho mais de autoridade e de respeito às normas estabelecidas.
Sei que algum grupo poderia dizer: “isso parece um autoritarismo medieval”. Não, deve-se perder o medo dessas críticas ladinas. Todo ser humano requer apoio e orientação de alguém, tem necessidade de exemplo e liderança. Em toda instituição há algumas normas e quem não as cumpre vai embora da instituição. Eu creio que está faltando em muitos níveis da Igreja uma maior autoridade e uma maior obediência. E creio que isso não é nem medieval, nem moderno, nem pós-moderno. Assim foi desde Adão e Eva e assim será até o final dos séculos.
– A América Latina viveu nos últimos meses os escândalos do presidente do Paraguai, Fernando Lugo, que reconheceu a paternidade quando ainda era bispo, e do Pe. Alberto Cutié. Ambos deram muito o que falar sobre o celibato sacerdotal. Por que os sacerdotes vivem este conselho evangélico?
– Cardeal Juan Luis Cipriani: A encíclica Deus Caritas Est diz tudo. Eu creio que não devemos falar só destes dois casos, do celibato, mas do amor humano em geral. O Papa nos explica com muito detalhe como esse amor, que inicia nesse movimento do eros, converte-se em um ágape. Já não é o impulso do sexo que está posto por Deus na natureza humana, mas esse impulso se purifica e se converte em entrega ao outro, no ágape.
O amor já não é somente o impulso de um, mas a entrega e o encontro de dois, que faz que sejam uma nova criatura, que é o amor. O Santo Padre nos diz que, no Novo Testamento, quase sempre se utiliza a palavra ágape. O Papa começa a explicar-nos o que é o amor dizendo-nos: “o amor nasce na cruz”, porque “tanto amou Deus o mundo, que nos enviou a seu filho unigênito para que, morrendo na cruz, nos redimisse”. É Deus quem o define, de uma maneira muito clara, não só com palavras, mas com o envio de seu filho. Portanto, no mundo de hoje, ao não querer aceitar a dor, o sacrifício que leva à vida, mata-se o amor, e o que resta? Fica a possessão sexual. Amputou-se por temor, por covardia, por tibieza, a capacidade de sofrimento, porque só se busca o êxito e o prazer. Matamos a planta que surge da dor, que é o amor e, portanto, em muitas relações humanas, familiares, dá-se uma relação totalmente material, na qual praticamente a integridade da pessoa não está comprometida. Quando esse materialismo se apropria das relações humanas, então o homem e a mulher se convertem em objetos de uma experiência sexual mais ou menos ilustrada e, portanto, essa experiência perde sua estabilidade, vai e vem, não produz essa alegria da entrega, porque não sai da dor nem do sacrifício e, quando se apresenta uma enfermidade ou um problema econômico, uma discussão..., rompe-se os matrimônios do mesmo modo que ocorre com estes casos, como Lugo ou o Pe. Cutié, que no momento de sentir um sacrifício superior às suas forças, rompem a palavra dada.
Aos sacerdotes se pede essa castidade que se pede também ao matrimônio. Há uma castidade conjugal e há uma castidade no celibato. Quem sabe amar e quem tem a experiência de um amor matrimonial saudável e estável sabe de que estou falando. É o mesmo que a Igreja oferece a quem entrega tudo por amor a Deus. Não é menor nem é mais difícil, mas o produto desse amor hoje está escasso e, portanto, em um mundo materialista e um pouco hedonista, é difícil explicar o celibato, que é um tesouro da Igreja. Por este motivo, se quer converter esse tesouro em barro, porque quem tem os olhos sujos, não distingue nem a verdade, nem o amor, nem a beleza.
– Continuando com os temas de atualidade, vemos como, em 17 de maio passado, a Universidade de Notre Dame nos Estados Unidos condecorou o presidente Barack Obama, apesar de suas políticas contrárias à vida humana. As universidades católicas estão renegando sua fé?
– Cardeal Juan Luis Cipriani: Eu creio que é necessário voltar às fontes. A identidade católica não é propriedade de uma universidade, nem do reitor, nem do ministro de educação. A identidade católica está acreditada pela Igreja Católica. O que não se pode e não se faz em nenhuma instituição é dizer “este é um carro Toyota”, se a fábrica Toyota não lhe põe a marca.
Creio eu que é necessário um pouco de clareza e de autoridade. De clareza por parte dos que são responsáveis para poder dizer: “se você não quer, deixe de ser católico”. Mas o que não podemos é vender um produto desgastado. Pensar que os pais e os filhos vão a uma universidade que tem o letreiro de “católica” e que depois ensina o contrário à fé é uma confusão e um abuso. Creio que a Igreja tem o dever de chamar as coisas pelo nome.
O que não me parece bem é que haja um presidente dos Estados Unidos, com todo o respeito que merece o Senhor Obama, que vá a uma universidade católica para explicar aos católicos o que é ser católico e, em seu discurso, faça toda uma aula de teologia vazia, cheia de relativismo, muito perigosa, convocando os dissidentes da Igreja Católica. É uma vergonha.
Penso que os bispos norte-americanos reagiram com bastante honradez, ainda que nem todos. Eu não sou partidário da polêmica e da confrontação. Mas parece uma provocação prestar uma homenagem católica a um presidente que nos primeiros cem dias impulsionou o aborto, os casamentos gays, as pesquisas com células-tronco embrionárias e toda uma agenda antivida. Não me parece que seja a pessoa mais adequada para receber um reconhecimento da universidade de Notre Dame, que, aliás, há muitos anos está nesta grande confusão.
Em todos os tempos a tivemos, não pensemos que a Igreja começa conosco. Isto é muito antigo. Mas, qual é a diferença? Que antes, quem dissentia, ia embora da Igreja; hoje fica dentro e isto me parece que requer de nós, por amor à Igreja, um pouco mais de firmeza. Olhemos algumas destas situações diante de Jesus, na Eucaristia e na cruz, e digamos: “Senhor, isto é como em teus tempos, nem mais nem menos. Mas como respondiam teus discípulos? Primeiro com temor, logo com dor e depois com martírio. Pois se estes são os tempos; aqui estamos, Senhor, para que, por amor a ti e à Igreja, ao teu corpo místico, tenhamos a coragem de defendê-la até o final”.
Por exemplo, vemos com que clareza e amor à verdade o Papa Bento XVI voltou da Terra Santa. Com que alegria, com que clareza abordou todos os temas que pareciam difíceis, do ponto de vista político, mas ele os tratou do ponto de vista do que quer um peregrino da paz, um Vigário de Cristo. Cada vez o amam mais, cada vez é um líder que ilumina mais este mundo que está na escuridão.
– Como o senhor acha que este problema atinge as universidades católicas na América Latina?
– Cardeal Juan Luis Cipriani: As universidades e as escolas e até os times de futebol refletem o que ocorre na sociedade. Pode haver uma universidade que tenha uma proposta luterana, marxista ou pagã, mas deixemos que haja também uma universidade com a proposta católica. Esta está muito bem definida por João Paulo II em muitos de seus escritos e o condensou na constituição apostólica Ex code ecclesiae. Portanto, não é de nenhuma maneira uma limitação à autonomia universitária, não confundamos a autonomia que tantas vezes foi a resposta ao controle estatal.
Mas toda ciência tem a limitação de seu próprio método científico e, portanto, com os métodos da filosofia eu não posso fazer bioquímica. Com os métodos da teologia eu não posso fazer física. A proposta católica, que é uma contribuição à sociedade e ao progresso, simplesmente pede nesse espaço que se lhe permita em sua integridade ser oferecida a todos os alunos. Nessa integridade católica, logicamente, creio eu que não é nenhum problema nem a liberdade de cátedra, nem a autonomia. Não vai ser um projeto confessional, no sentido de fechado, porque então a universidade fracassaria e as universidades católicas não fracassaram. Foram pioneiras em muitas partes do mundo.
Compreendo que a situação reflete este relativismo de pensamento e que muita gente, em nome da tolerância, é muito intolerante. Exigem tolerância, como ordinário do lugar, e contudo não toleram a proposta católica que a Igreja propõe. Então, temos de ser um pouco mais sinceros. A verdade é algo que é doloroso, a verdade cansa, constrói, enche de esperança, de fé e de alegria e creio que devemos redescobri-la.
Estamos em um mundo no qual as comunicações trazem a possibilidade da transparência. Pois que essa transparência permita que se veja a verdade.
Creio eu que são momentos em que se deve ter uma enorme proximidade com o Senhor, deve-se ter paixão pelo tempo que nos coube viver, e não temor; deve-se buscar no fundo do coração das pessoas essa semente de bondade que todos temos, mas não fazê-lo pela via de uma negociação política ou de um intercâmbio de poderes, como um intercâmbio de equilíbrios ou como uma complicação ideológica. É muito mais sério. Levemos mais a sério a pessoa humana, a família, Deus criador, Deus feito homem, nossa mãe Santa Maria, no que representa para a maternidade de uma mulher.
Fonte: www.zenit.org