Bispo brasileiro defende celibato opcional e ordenação de mulheres


04.03.2009 - Quatorze cartas caíram na mesa do bispo Dom Clemente Isnard. Homem de fala pausada, mas nada reticente, ele mergulhou em ponderações numa das celas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, em 2008. A pedido do cardeal fluminense, quatorze bispos pediram que não publicasse "o livro". Antes ouvira do abade: "Eu não li o livro. Mas ele vai lhe trazer muito sofrimento. E vai trazer respingos para mim e para o mosteiro".

Dom Clemente tinha o salvo-conduto da idade: 90 anos. Ordenado presbítero em 19 de dezembro de 1942, exerceu por 20 anos a presidência da Comissão de Liturgia da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e participou do Concílio Ecumênico Vaticano II - convocado pelo papa João XXIII. O bispo possui uma longa e respeitada trajetória no clero, o que garante força às suas palavras

Mas outro impulso o moveu na hora de decidir pela publicação da plaqueta Reflexões de um bispo, que levanta idéias renovadoras para a Igreja e lança dardos apimentados contra os burocratas de Roma. "Devo dar um testemunho", definiu sua missão.

O núncio apostólico, embaixador do Papa junto ao governo de um País, influiu para que a editora Paulus não editasse o livro, segundo relata Isnard. Entre suas propostas ousadas, está a de acabar com os onerosos cargos "diplomáticos". Num sermão em Olinda, ao completar nove décadas, o bispo criticou a existência do núncio e defendeu a descentralização da cúria romana.

- Ele esteve comigo aqui (no Mosteiro). Apertou minha mão, não falou nada. Nem eu falei nada. Eu teria que falar pra ele: "Senhor núncio, com que direito o senhor proibiu os padres paulinos de editarem meu livro?". Eu tinha direito de perguntar isso a ele. Mas aí seria um desaforo - conta.

Isnard recebeu a reportagem de Terra Magazine, no mosteiro beneditino do Rio, para esclarecer suas idéias e avaliar as transformações da Igreja no pontificado de Bento XVI. Nomeado membro do Conselho para execução da Constituição de Liturgia pelo papa Paulo VI, em 1964, o bispo critica os "recuos indevidos" do legado do Concílio Vaticano II. O cardeal Ratzinger tem esgrimado contra aspectos modernizantes do concílio ecumênico.

- Nós temos, na Igreja, um grupo retrógado grande - reconhece.

As teses renovadoras de Dom Clemente Isnard podem ser condensadas em quatro pontos: o celibato opcional, a ordenação de mulheres, a participação popular nas nomeações de bispos e a entrega de obrigações a bispos eméritos. Ele também apóia uma idéia de Dom Aloísio Lorscheider (1924-2007): o fim do colégio cardinalício para a escolha do papa.

O celibato opcional dos padres, ressalta, chegou a ser proposto na década de 60. Mas uma pedra foi posta em cima.

- O patriarca oriental, Máximos IV, foi uma das personalidades mais brilhantes do Concílio Vaticano II. Era a favor. Chegaram a abrir as incrições para quem quisesse falar sobre isso. Então, o papa Paulo VI sondou quais seriam as cabeças e chamou um por um e convenceu que não era oportuno.

Quanto à ordenação feminina, Isnard acha "muito estranho que durante dois mil anos não se tenha feito isso na Igreja Católica."

Nesta entrevista, não se priva de contar bastidores da história da Igreja brasileira e condena "retrocessos" na CNBB. Revela uma das histórias que retirou do livro, a pedidos. Ilustra o comportamento autocrático de parte da cúpula católica.

- Os paulinos pediram pra tirar. Eu tirei o nome... O algoz é um arcebispo, que já é agora também emérito. O padre pediu uma audiência e ele respondeu por escrito, e assinou: "Seu pedido de audiência me deixa enojado. Fale com a secretária".

Dom Clemente Isnard revisita ainda memórias de Jayme Ovalle, Augusto Frederico Schmidt, Raul de Leoni (seu tio), Alceu Amoroso Lima e Dom Sebastião Leme, além de descrever o microcosmo da Livraria Católica, no Rio.

"Costumo responder às perguntas", avisou de saída, como quem previne o entrevistador para relatos cristalinos.

Leia a entrevista:

Terra Magazine - Por que o senhor defende o fim do colégio cardinalício?
D. Clemente Isnard- D. Aloísio Lorscheider, que era cardeal, dizia que se devia acabar o colégio cardinalício - quer dizer, o grupo de pessoas que elege o papa - e fazer com que o papa seja eleito pelos presidentes das conferências episcopais. Isso, pra mim, é uma possibilidade ímpar, representativamente. Aquele colégio cardinalício é de pessoas escolhidas pelo próprio papa. De certa maneira, ele faz o seu sucessor. Porque ele escolhe os eleitores do seu sucessor. Quando ele morre, os cardeais do mundo inteiro se reúnem. Hoje são do mundo inteiro. Antigamente era pior. Porque era um grupo quase exclusivamente de italianos.

Agora, não. Tem uma maioria italiana, mas do Brasil tem três ou quatro, da Argentina, Chile, Peru, Colômbia, enfim, a América Latina quase toda. Depois a América do Norte com boa representatividade, a Ásia... A Europa fica com mais privilégio, é mais numerosa (Alemanha, França, Itália). Mas aí esses presidentes de conferência episcopal não são vitalícios, eles são eleitos por um prazo - três ou quatro anos. Varia conforme o País. Não há o perigo de se formar um grupo que vota numa determinada linha. Então, o que nós estamos vendo agora é que, na Igreja, há uma maioria no episcopado que se traduziu no Concílio Vaticano II, em 1962. Eu estive lá, nos quatro anos do Concílio. Eram bispos do mundo inteiro. Os cardeais estavam também, são 120 cardeais.

Isso ajuda a arejar a Igreja e a desmontar uma burocracia?
É um pensamento muito bom do cardeal Lorscheider, que votou na eleição do papa. Não sei em quantos ele votou. No João Paulo II ele votou. Aos 80 anos, perde o direito de voto. Essa é uma coisa boa que fez o papa Paulo VI ao esclarecer: o bispo, aos 75 anos, pede renúncia da diocese. E o cardeal, em Roma, aos 80 anos. Deu mais cinco anos. Antigamente, no conclave pra eleger o papa, iam os velhinhos de cadeira de rodas, intereiramente ausentes. Eram eleitores, tinham que ser convocados, né? Com 80 anos, não entra mais para votar. D. Aloisio fala disso, no livro dele, logo no princípio.

O senhor defende que a escolha dos bispos pode ser mais próxima aos fiéis, aos leigos. Essa idéia tem representatividade na Igreja?
Olha, meu filho, eu acho muito difícil. Porque, você sabe, o papa que foi eleito já tem 80 anos. Não vai ficar muito tempo. Em todo caso, tem 80 anos. Bem, ele foi eleito porque durante muito tempo trabalhou na Cúria Romana, durante quase 20 anos, naquela congregação da Doutrina da Fé. E ele deve ter exercido muito influência no papa João Paulo II. Ficou sempre com cargo. Morreu João Paulo II e os cargos, em Roma, continuaram esperando o novo papa. O pontificado de João Paulo II foi um dos mais longos da história. É interessante que ele foi vítima daquele atentado, foi ferido, mas foi um dos mais longos. No fim da vida, estava se arrastando. Não sei se ele estava lúcido ainda. Não sei. "Ah, porque ele falou, fez o sermão...". Pode ter sido escrito por outro. Isso a gente nunca sabe.

Como é que funcionaram as coisas no final da vida do papa João Paulo II? No Vaticano, quando um papa está doente, como é que age o entourage?
Toma posse. Toma conta. Ali no entourage eu conheço alguns cardeais. Conheço um cardeal francês, não sei se é da Cúria... Há dois tipos de cardeais. O cardeal da Cúria mora lá. E tem o cardeal que é bispo em algum lugar. Por exemplo, aqui no Rio de Janeiro e em São Paulo, o bispo é cardeal. Aí os cardeais são muito mais independentes. O cardeal da Cúria, naquele ambiente... Houve mudança, mas não deu pra eleger um papa com outra tendência. O cardeal (Carlo Maria) Martini é um jesuíta, foi reitor da Universidade Gregoriana de Roma e nomeado arcebispo de Milão por Paulo VI. Então, é automaticamente nomeado cardeal. Milão é a principal diocese do mundo. Ele foi arcebispo, cardeal, mas não fez essa proposta de eleição do papa. Quem fez foi o brasileiro Lorscheider.

Agora, consta... - isso é segredo que é violado e ficamos sabendo, o tal segredo de Polichinelo (risos) - consta que na eleição há vários escrutínios, dois por dia. Faz um de manhã, outro de tarde, pra dar tempo. É preciso dois terços dos votos. E aí aconteceu uma coisa: nenhum teve dois terços dos votos. O cardeal Ratzinger, que tomou posse, tirou em torno de 30 votos. Mas o cardeal Martini teve 20 votos. E mais uns votos assim espalhados, de modo que nenhum dos dois tinha os dois terços. Isso aconteceu na história, na Idade Média. Uma vez, ficamos sem papa dois anos, porque os cardeais eram poucos e não se puseram em acordo. Depois, o pessoal em Roma descobriu que a solução era diminuir a comida. Não davam comida suficiente pros cardeais. Mas, aqui, nós hoje em dia somos mais civilizados. O Martini desistiu da candidatura. O pessoal reuniou os votos no cardeal Ratzinger. O Ratzinger vai tomar muito cuidado ao nomear novos cardeais.

Por quê?
Pra ter segurança. Quem é o candidato dele? Não sei. Talvez o arcebispo de Viena, (Christoph) Schoenborn, um homem notável. Porque não pode ser um bobo, né? Dos cardeais franceses, conheço um de Roma. Um homem notável. Mas deve estar muito velho. Ele já trabalhava em Roma.

No atual papado, há um recuo do Concílio Vaticano II?
Indevido. O Concílio Vaticano é ecumênico. Reuniram-se 2.300 bispos. Tomou decisões. Por exemplo, na liturgia, nós conseguimos quase tudo. Depois, como era minha especialidade, e Paulo VI queria uma representação bem internacional, apesar de ele não me conhecer, ele me nomeou para o Conselho de Execução da Constituição. Porque a Constituição de Liturgia determinou: "Faça-se um novo rito da missa". Mas não disse como. Precisava de um Conselho pra elaborar aquilo. E eu fiz parte desse conselho, em Roma. Foi trabalhoso... Porque o papa queria resolver. Paulo VI não era um "pau mandado". Ele era um homem que exitava. Muito delicado. E também um homem que custava a tomar decisões. O Concílio, uma vez, parou dois, três dias porque ele não tomava uma decisão que precisava tomar. O papa conserva sempre o poder decisório. Por exemplo, a questão do celibato opcional dos padres...

Que o senhor defende.
Foi proposto no Concílio por alguns membros, bispos. E o patriarca oriental, Máximos IV, foi uma das personalidades mais brilhantes do Concílio Vaticano II. Era a favor. Chegaram a abrir as incrições para quem quisesse falar sobre isso. Então, o papa Paulo VI sondou quais seriam as cabeças e chamou um por um e convenceu que não era oportuno. O Concílio estava indo muito bem, muito em paz e isso iria trazer desconforto...

Isso precisa ser rediscutido? Dá para esclarecer sua posição?
Defendo o celibato opcional - isso não é dizer: "os padres agora podem casar". Os padres pediram dispensa do ministério. Na minha diocese, eu tive quatro padres que pediram. Tive que dar licença e encaminhar a Roma. Um deles eu até me interessei pra ter uma resposta rápida. É um padrezinho italiano, muito bom, mas que já tinha tido dois filhos. E tinha uma mulher, uma professora. Ele conseguiu uma escola da roça para ela. Ficava escondida nessa escola. Uma vez por semana ele ia lá, dormia, e assim fazia. Mas era um padre bom. Tinha amor a Deus, à Igreja, à sua função. Eu senti muito, mas dei licença pra ele fazer o casamento. Já estava desligado do ministério. Como bispo, eu posso fazer os ministros extraordinários do casamento, da comunhão, do batismo. Caso por caso. E ele também estava feliz por isso. Era professor, dava aulas, só não podia celebrar missas e dar absolvição sacramental. Bem, saí da diocese e o meu sucessor veio: "não, não, não pode fazer nada". Ele não podia mais batizar, casar, fazer celebração da palavra de Deus nas igrejas. Eu cheguei a nomeá-lo regente de uma paróquia... Isso é um cargo que eu criei na minha cabecinha aqui. Regente não é vigário. Ele fez o dever dele. Pregou a palavra de Deus, e pregava bem.

O celibato afasta boas vocações da Igreja?
Não. O que há é o seguinte: as vocações desceram muito de nível. Porque uma família piedosa, mas que não tem cultura nem tradições, a solução pra ela é colocar o filho num Seminário Menor, onde ele faz os estudos secundários. Lá então grande parte não fica. Os que ficam vão para o Seminário Maior. Nesta peneiração, sempre ficam alguns. Mas não tem mais ninguém assim como d. Luciano Mendes de Almeida, um neto de um homem do Império. Ou monsenhor Nabuco, da família Nabuco.

Não tem mais essa ligação com famílias tradicionais?
Não tem. O nível do episcopado brasileiro desceu. Essas pessoas de família com tradição não existem mais. Mesmo no mosteiro. Nós entramos aqui juntos: um era filho de almirante, outro filho de embaixador, meu pai era comerciante, mas tive educação primorosa, fiz em casa os estudos... Ninguém fez propaganda pra isso. Eu fui nomeado bispo e dois deles foram eleitos abades.

Vamos entrar no tema das ordenações de mulheres, que o senhor aborda de forma corajosa. Qual é sua tese?
Não proponho, levanto o pedido de que a Igreja pense sobre isso. Hoje eu proporia. É muito estranho que durante dois mil anos não se tenha feito isso na Igreja Católica. Mas é interessante que a Igreja Luterana, o reformador Lutero, não pensou também nisso. Ele casou-se com uma freira, mas nunca pensou em fazer essa freira uma sacerdotiza.

Como se justifica esse descompasso entre a Igreja e a sociedade, em relação à mulher, que conquistou mais espaços no último século?
Pois é, e cada vez mais, mesmo dentro da Igreja, nas ordens religiosas.

Houve participação de mulheres no Concílio?
No Concílio, entraram as mulheres em cargos, não para votar, mas dando as assessorias. Só na última sessão, mas entraram no Concílio. Uns dizem que deu certo, outros que não deu certo. A Igreja Anglicana está no mundo inteiro e, em outros países (fora a Inglaterra), existem mulheres que são pastoras, presbíteras... Há na Bíblia - nós temos que seguir sempre a Bíblia - uma frase de São Paulo, apóstolo, na "Carta aos Gálatas". Essa carta é muito importante porque, certamente, foi escrita por ele. Nessa carta ele repreendeu São Pedro, publicamente... O papa é sucessor de S. Pedro. Muito bem. São Paulo, na "Carta aos Gálatas", diz: "Não há diferença entre judeu e grego." Achavam que grego não podia ser admitido na Igreja Católica. "Não há diferença entre escravo e livre". O escravo era uma coisa. O dono podia matar o escravo, não era crime. "E homem e mulher". Judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher. Não há diferença em Cristo.

Doutrinariamente, isso pode justificar a ordenação feminina?
Esse texto bíblico é uma base, um fundamento. Naturalmente, toda a igreja conservadora... "Ah!...Ah!...". Então, hoje, se tivesse que votar, votava. Agora, há uma coisa que eu não sabia. Tenho cultura, mas minha cultura não é universal. João Paulo II, numa encíclica, escreveu que não era possível dar o sacerdócio às mulheres e que esta sentença da Igreja era definitiva. Agora tem uma discussão pra ver se sentença definitiva é definitiva mesmo (ri) Se é infalível... O Concílio Vaticano I, em 1870, aprovou a infalibilidade do papa em algumas condições. Mas não ele dizer que é definitivo... Com isso, ele teria que fazer sondagens. Não fez. Consulta aos bispos do mundo inteiro... Por exemplo, pra canonizar, pra declarar o dogma da Imaculada Conceição, depois o dogma de Assunção de Nossa Senhora, o papa consultou todos os bispos. E quase todos deram opinião favorável. Pra dizer que mulher não, não vá dizer que é definitivo. Isso não basta. É opinião de d. Aloisio Lorscheider e do cardeal Martini de que a Igreja poderá, amanhã, abrir o sacerdócio para mulheres.

Terra Magazine - O senhor acompanhou o caso do bispo inglês Richard Williamson, reabilitado pelo papa, que negou o Holocausto e disse que não houve câmara de gás, não morreram 6 milhões de judeus... Como esse tipo de pensamento ainda encontra guarida na Igreja?
Dom Clemente Isnard - Ele estava excomungado, porque tinha sido ordenado bispo sem direito. Por exemplo, eu posso ordenar outro bispo. Ordeno e será bispo. Eu incorro em excomunhão e ele também. Ficam dois excomungados. E eu não sou louco, nunca pensei nisso, em ordenar um outro bispo. Mas ordenei alguns bispos aqui no Brasil, oficialmente. Um dos meus grandes orgulhos é que eu ordenei d. Luciano Mendes de Almeida. Ele foi ordenado bispo pelo cardeal de São Paulo, por mim e pelo arcebispo de Uberaba.

E no caso do bispo Richard não houve...
São bispos cismáticos. Desde o início.

Esse tipo de pensamento retrógado e ofensivo aos judeus ainda representa uma parcela grande da Igreja?
Nós temos, na Igreja, um grupo retrógado grande. Que queiram negar essa história... Não sei. Quem tem cultura, sabe. Eu tenho. Conheço alguns casos. Como a de Edith Stein. Ela era uma professora universitária, judia, converteu-se, entrou num carmelo na Alemanha, em Colônia. Quando Hitler começou com as coisas dele, ela pensou em vir para o Brasil, pra América, mas não dava mais para sair. Então ela foi à Holanda... Depois Hitler ocupou a Holanda. E foram lá no carmelo, na Holanda, pediram a lista das carmelitas. Não puseram o nome dela, mas sabiam que ela estava lá. Prenderam, levaram para a Alemanha e, em três dias, ela estava na câmara de gás. Isso é uma professora univertária, uma freira, absolutamente inocente. Um crime. Assim como esse, há milhões de outros. Eu acredito que são milhões. Agora, ficar discutindo se foram 6 milhões ou 300 mil...

Como o senhor se relaciona com outras religiões? Durante muito tempo, a Igreja reagia ao Candomblé, de origem africana. Houve avanços nesse diálogo inter-religioso?
Tenho a impressão de que há avanço. Em relação ao Candomblé, antigamente ele era desprezado. Mesmo os adeptos do Candomblé eram pessoas sem cultura, eram antigos descendentes de escravos, negros, já por isso mesmo desprezados pela sociedade. Os Estados Unidos elegeram um presidente da República filho de negro... O pai dele é retinto, a mãe não. O povo elegeu. Isso mostra uma mudança de mentalidade. A questão da cultura: um culto de candomblé é muito, não sei como dizer, primitivo.

E corporal. O senhor já foi a algum culto de candomblé?
Nunca me interessei. Bem, eu entrei para o mosteiro com 18 anos. Me formei em Direito, sou advogado. Mas, naquele tempo, não passava na cabeça da gente espiar um candomblé, uma coisa assim. Aliás, aqui no Rio, havia pouco. Na Bahia, sim. Talvez em Recife. Aqui no Rio, quase não havia.

Queria que o senhor contasse seu percurso para publicar "Reflexões de um bispo". Foi pessoalmente doloroso?
É. Foi doloroso pelo seguinte: o livro se originou de um sermão que fiz em Recife, no dia dos meus 90 anos. Celebrei uma missa, veio muita gente. E veio um grande teólogo, o padre José Comblin, que eu conheci então. Foi na Igreja das Fronteiras, a de dom Helder. Eu escrevi o sermão. A missa demorou muito porque eu não podia impedir que as pessoas falassem. E dei a palavra, na hora do evangelho... Bispos, padres, leigos e até mulheres falaram. No fim, fiz uma espécie de recapitulação de minha vida. "E agora, o que é que eu vou fazer?". Eu tinha falado das coisas que tinha feito. "Vou lutar por uma Igreja sem núncio apostólico, sem cúria romana...". Terminei assim o discurso. Não era um sermão. Aí o padre Comblin esteve comigo depois, em João Pessoa, onde houve o jubileu de ouro episcopal de José Maria Pires, nosso dom Pelé.

Sim...
Ele esteve aqui no Rio para esse curso do cardeal. Antes de concluir, quero dizer uma palavrinha sobre esse curso. O curso foi idealizado por d. Eugênio Salles, logo no início do seu governo. Tinha havido já dois cursos da CNBB organizados para os bispos novos. Era em agosto, e a CNBB não tinha dinheiro. Cobrava. O que fez d. Eugênio? Arranjou colaboradores na Europa. Ele pagava a passagem desse pessoal todo. Trazia grandes nomes conservadores. Rigorosamente da orientação dele. E marcou no início do ano o curso. Gentilmente convidados, não tendo que pagar nada, os bispos aceitaram. Eu nunca fiz esse curso, em sinal de protesto.

Por causa dessa orientação conservadora?
Por causa do nascimento do curso. D. Luciano também nunca fez. O José Maria Pires agora está fazendo... Mas, no princípio, não fazia. Ficou um curso simbólico e a CNBB foi levada a abolir seu próprio curso. Não há mais cursos para os bispos novos.

É um retrocesso?
A própria CNBB passou por alguns retrocessos. Mas quando teve como presidente o cardeal...

D. Lucas?
D. Lucas Neves. E vice-presidente o arcebispo de Aparecida, que vai ser cardeal. Ele é agora presidente do Celam. É uma tradição - Roma gosta muito de tradições - que o presidente do Celam seja cardeal. Eu já fui vice-presidente do Celam. Lá conheci o secretário-geral, colombiano, que foi presidente e agora é cardeal. É o (Darío) Castrillón. Um homem que cuida das ligações com os lefebvrianos. Então, nunca fiz o curso. Recebo todos os ano uma carta de convite.

E vai continuar recebendo...
Vou continuar. Hoje, eu não respondo. Houve uma ocasião em que eu dei uma resposta, quando entrou o d. (Eusébio) Scheid. Não quis brigar com d. Eugênio Salles. Tinha me dado muito com ele porque esteve no Concílio comigo. Ele começou em Natal. Mas ele era bispo auxiliar. Depois foi feito arcebispo da Bahia.

Mas foi à Bahia como bispo auxiliar, abaixo do Cardeal da Silva.
Depois coadjutor e cardeal, na Bahia. Organizou um curso de bispos lá. Esse eu fui, na Ilha de Itaparica.

Que tal?
Esse não era contra a CNBB. O que foi contra a CNBB foi o do Rio.

O senhor falou que, em seu sermão em Pernambuco, criticou a existência do núncio apostólico. E volta a criticar em seu livro. Naturalmente, isso não agradou ao núncio apostólico...
Ah, bem! Não sei se ele soube. Porque eu não publiquei. Foi falado no sermão. Mas ele esteve comigo aqui. Apertou minha mão, não falou nada. Nem eu falei nada. Eu teria que falar pra ele: "Senhor núncio, com que direito o senhor proibiu os padres paulinos de editarem meu livro?". Eu tinha direito de perguntar isso a ele. Mas aí seria um desaforo. Depois não podia fazer isso porque ele estava visitando o mosteiro. Mas foi a única vez que encontrei com ele, de apertar a mão. Dias depois dos meus 90 anos, tivemos os 50 anos de bispo de José Maria Pires, em João Pessoa. Eu fui. E cheguei lá, havia uma procissão antes da missa, um pouco longa. Esperei na Catedral. O padre Comblin sentou-se a meu lado. Enquanto nós esperávamos, ele me disse: "Olha, gostei muito do seu sermão. Falei nele agora em Belo Horizonte, o pessoal gostou que o senhor tivesse falado isso. O senhor deve escrever." E eu falei: "O senhor faria o prefácio?". "Sim, faço o prefácio". "E também corrige?". Porque ele é um grande teólogo. Pois sim. Vim para o Mosteiro e comecei a escrever. Quando tinha um capítulo, mandava a ele. Fez algumas correções de ignorância minha e uma citação da Lumen Gentium que ele sugeriu.

Aí o senhor enviou para as Paulus.
É, enviei para os Paulinos.

E eles se negaram a publicar?
Não, eles aceitaram, me pediram pra fazer umas pequenas modificações. Porque eu falava do arcebispo de Olinda e Recife. Uma pessoa com quem eu tinha me dado e me tinha até convidado a ordenar o bispo-auxiliar dele. Mas depois cometeu injustiças clamorosas com um padre meu amigo, que tinha sido cedido por d. Helder, predecessor desse. Me ajudou por dez anos em Friburgo. É um amigo íntimo meu. Esse padre passou fome por causa do arcebispo. Eu não disse nada a ele, porque o padre não queria. Ele sabia e comecei a falar que isso não se faz com um padre. Deve ter chegado aos ouvidos dele. Houve um outro arcebispo, de Maceió, um bobo, ou como diz o d. José Maria Pires, um bocó. É, é... Esse eu visitei uma vez em Maceió. Quando o arcebispo de Recife não deu nada, nenhum cargo, ao padre meu amigo... Ele tinha pedido pra passar dois anos na Europa, fazendo uma reciclagem. Isso ele deu. A licença. Quando ele voltou, pontualmente, no dia exato, ele compareceu na Cúria para pedir obediência. "Não tenho nada pra você. Não tenho paróquia nenhuma".

Isso foi posto no livro, mas acabou sendo tirado?
Os paulinos pediram pra tirar. Eu tirei o nome. Está lá no capítulo dos padres seculares. Tem também o caso, que eu tenho uma carta... O algoz é um arcebispo, que já é agora também emérito. Esse caso tem até uma coisa pior. O padre pediu uma audiência e ele respondeu por escrito, e assinou: "Seu pedido de audiência me deixa enojado. Fale com a secretária".

Ouço o relato dessas histórias e penso como o senhor, aos 91 anos, se sente por ter que conviver com alguns colegas.
É como diz o Comblin: os velhos dizem as coisas. Eu criei para mim uma consciência nova, de que na Igreja eu devo dar um testemunho, mesmo que esse testemunho... O abade aqui me disse: "Eu não li o livro, não. Mas ele vai lhe trazer muito sofrimento. E vai trazer respingos para mim e para o mosteiro". Seria de fato uma coisa muito chata se o Mosteiro sofresse com o que eu escrevo. Mas, depois, eu pensei, pensei: "Não, eu publico." O cardeal daqui me escreveu uma carta e fez todos os bispos do Estado, Leste I, assinarem a carta.

Pedindo pra não publicar?
Pedindo pra não publicar. E eu respondi uma página e meia a cada um. A mesma carta, mas tive que multiplicar 14 vezes. Só não mandei para os bispos auxiliares. Ah, até mandei para os auxiliares, porque eles tinham assinado.

E, enfim, o livro foi publicado em outra editora, a Olho d'Água.
Por isso o livro não se vende no Rio. Nem aqui no Mosteiro. O Mosteiro tem uma livraria, mas não se acha.

Não se encontra seu livro no Rio de Janeiro?
Um ou outro que não se sabe como chegou.

Fonte: Terra

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Nota de www.rainhamaria.com.br

So para lembrar...

Padre Antônio. (o velho e tradicional Vigário)

Numa cidadezinha perdida e esquecida, lá nos confins deste tão imenso Brasil, existe uma igreja quase sem existir. Em torno, mil ou duas mil almas mais ou menos desalmadas; dentro, um velho vigário a fazer contas intermináveis, e um padre coadjutor, na sacristia, a olhar o morro, a linha férrea lá longe, o rio, talvez o céu.

Já traz cinzas na cabeça e uma curvatura nas costas, mas naquele momento o que mais lhe pesa é a solidão que cerca a velhice que se aproxima. Está ali. Não é nada. Não sente forças para fazer nada pela vila indiferente que quer viver sua vida rotineiramente encaminhada para a morte. Sente-se inútil a mais não poder. Quer que ele celebre a única missa da féria, e com uma só porta apenas entreaberta. Precaução aliás inútil porque ninguém mais aparece nas missas dos dias da semana. O povo não gostou quando o vigário tirou os santos que há mais de cem anos povoavam a velha igrejinha. Diminuiu a assistência à missa, diminuíram as confissões. A conversa com o vigário, na hora do jantar, reduz-se a monossílabos.

Padre Antônio torna a pensar nas coisas que se perderam: a água benta, a oração do terço à noite, os santinhos que dava aos moleques na rua com magnanimidade, e tudo o mais que fazia companhia, que cercava a alma da gente nas igrejinhas da roça. Por que esta devastação? O vigário não gosta de abordar o assunto. Sofre a seu modo, com a tenacidade obtusa dos animais feridos. Cerra os dentes. Não pensa. Não fala. Faz o que o bispo mandou fazer e encerra-se num mutismo quase vegetal. Às vezes parece ter gosto de transmitir seu sofrimento fazendo um outro sofrer. É seu modo de conversar, e quem paga é padre Antônio.

Um dia padre Antônio não encontrou sua velha batina e teve de pedir uma explicação a d. Ana e ao vigário. Explicaram-lhe que estava imprestável. Ganharia nova batina? Não. Clergy-man também é muito caro. Padre Antônio deveria comprar na loja do João Mansur umas calças de lonita e duas camisas esporte. E é com esta roupa pobre que padre Antônio agora se debruça na janela e consulta o infinito. Pobre, pobre padre Antônio. Ele nunca foi propriamente vaidoso e preocupado com a roupa que haveria de vestir, como aconselha Nosso Senhor. Mas essa história da batina doía-lhe ainda como se estivesse em carne viva, como se 1he tivessem arrancado a pele. E o pior é pensar que é com esta roupa por baixo, esta roupa de rua, esta roupa sem bênçãos que deve celebrar a Santa Missa. Disseram-lhe que era mais prático usar uma só alva por cima do traje esporte. E esta alva não era mais daquelas antigas, rendadas e compridas. Padre Antônio não queria as rendas para si, já que era desgracioso e escuro: queria-as para enfeitar o louvor de Deus. Mesmo porque, descontada alguma andorinha, nenhum ser vivo aparecia para assistir ao Sacrifício de nosso Salvador. Nem valia a pena bater a campainha. As novas alvas não têm rendas. São ordinárias e curtas, sim, curtas, porque o importante é aparecerem as calças para todo o mundo ver que o padre é homem, como outro homem qualquer.

Está na hora de preparar a missa da tarde, e padre Antônio sente a tristeza aumentar. Está só. Está só. Não tem com quem falar. Poderá conversar na farmácia com a turma do gamão do Frederico, mas depois a volta para a casa é ainda mais pesada. Poderá perguntar a d. Emília se está melhor do reumatismo, e a d. Maria se o marido já voltou do Rio. Mas não tem ninguém com quem possa falar, com quem possa desabafar, a quem possa explicar a desmedida tristeza de vestir por cima das calças uma alva sem rendas, e a quem possa dizer a saudade que tem da batina preta, a batina bendita em que um dia amortalhara o homem velho para viver em Cristo Nosso Senhor. E não tem ninguém a quem possa perguntar tremendo: «O que é que está acontecendo em nossa Igreja? E o Papa?» Ou então alguém, um irmão, um padre, a quem possa dizer com medida indignação: «Não pode ser! Não pode ser! As portas do inferno não prevalecerão!»

Padre Antônio olhou mais uma vez para o horizonte que a noite já escondia. O mundo começava além daquela serra... O mundo! Padre Antonio curvou a cabeça como um condenado. Estava preso! Estava preso! Abriu então as duas mãos grandes e magras que considerou com triste ternura: um dia elas tinham recebido o poder de consagrar o Pão e o Vinho, e de trazer assim ao mundo, como a Virgem Santíssima, o Corpo de Deus. Mãos grandes, mãos nervosas e escuras, mãos consagradas. Ao menos esta pele não lhe arrancam, esta marca não lhe tiram.

Num desamparo infinito padre Antônio contemplava as duas mãos frementes, tão poderosas e tão inúteis. Turvava-se o espírito, vacilava a razão e a fé. Estão ali as mãos. E o resto. E a água benta? o Latim? as coisas da Igreja? As palmas inúteis não respondiam às suas indagações, e até pareciam pedir-lhe uma resolução, uma decisão, já que a mão foi feita mais para fazer do que para pensar... O que é isto? O que é isto nas palmas das mãos? Estará chovendo? Padre Antônio, padre Antônio, o senhor está chorando. Quem foi que falou? Ninguém. Ninguém. É o próprio padre Antônio que tomou o costume de falar com o padre Antônio.

Juntam-se as mãos. E das profundezas dos abismos que todos trazemos, mesmo debaixo de uma camisa esporte, subiu um clamor de aflição: «Usquequo exaltabitur inimicus meus super me? Respice et exaudi me! Respice et exaudi me! Respice et exaudi me, Domine Deus meus...».

E então, neste momento infinito, padre Antônio teve a incomparável certeza de que não estava só.

Por Gustavo Corção (15-2-69)


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