Revelações sobre «operação papéis falsos» para salvar judeus


24.11.2008 - Memórias de Mirjam Viterbi Ben Orin na Itália do nazi-fascismo

Em sua edição diária de 17-18 de novembro de 2008, o jornal vaticano L'Osservatore Romano revela tudo o que um bispo católico, de forma heróica, fez por uma menina judia, que escreve suas memórias, e por sua família perseguida pelas leis raciais nazi-fascistas.

«Recordo a grande simplicidade e a pureza do seu olhar, algo bom e ingênuo que parecia liberar-se, junto a uma grande força, de cada gesto, de cada palavra sua. Na sombra e no silêncio das grandes estâncias, a figura do bispo dava segurança, como algo em que a pessoa podia se apoiar.»

O prelado de quem se fala é Dom Giuseppe Placido Nicolini, e quem recorda sua figura, mais de 60 anos após o encontro, é Mirjam Viterbi Ben Horin. Era 1943 e ela uma menina que, com seus pais e irmã, pôde liberar-se da perseguição nazi-fascista em Assis, graças à organização de socorro aos judeus posta em prática precisamente pelo bispo com a ajuda de dois sacerdotes em especial: Pe. Aldo Brunacci e o Pe. Rufino Nicacci.

Os três protagonistas do acontecimento foram reconhecidos como «Justos entre as Nações» pelo museu da memória judaica de Jerusalém, Yad Vashem. Mas este documento constitui um ulterior tijolo para a reconstrução da verdade histórica daqueles anos trágicos.

Cada relato revela algo inédito – ainda que só seja do ponto de vista do narrador – junto à gratidão por aquela ajuda desinteressada, não isenta de riscos. Precisamente o reconhecimento impulsionou Mirjam Viterbi Ben Horin a divulgar sua recordação, filtrada pelo olhar de uma menina.

Mirjam Viterbi Ben Horin escreveu em italiano o livro «Com os olhos de então» («Con gli occhi di allora», Morcelliana, 2008), no qual narra sua história de menina judia que, após as leis raciais de 1938, foi obrigada a deixar a casa de Pádua e a refugiar-se com a família em Assis, entre 1943 e 1944.

E lá descobriu a existência de homens e mulheres que não renunciaram à sua própria humanidade, que não se subtraíram ao dever do bem, ainda conscientes de que aquilo teria podido custar-lhes a vida.

«Escrever estas páginas é também a maneira com que hoje agradeço todos aqueles que me fizeram sentir que a vida, inclusive nos momentos mais escuros, pode ser bela, se alguém está perto, estende-nos a mão ou simplesmente, inclusive com seu próprio silêncio, está junto de nós; alguém que com a sua presença rompe a bolha de nossa solidão e do medo.»

A figura central do relato é a do bispo, narrando como se fosse hoje o primeiro encontro com a família Viterbi: «Papai e mamãe lhe explicaram quem éramos – recorda Mirjam – e lhe entregaram os poucos objetos judaicos que nos haviam acompanhado desde Pádua e que, se fossem descobertos, teriam podido denunciar nossa identidade».

«Dom Nicolini lhes recolheu tudo com atenção e delicadeza, garantindo que colocaria os objetos em um lugar seguro pessoalmente. Com efeito, como depois se soube, acostumava escondê-los ele mesmo na parte subterrânea do palácio episcopal, tampando a entrada depois ele mesmo, enquanto Dom Aldo Brunacci iluminava o lugar com um candeeiro.»

Uma vez postos em segurança, revela Mirjam, o seguinte objetivo era conseguir «papéis falsos», algo «essencial para nosso futuro, de que se teria ocupado mais diretamente Dom Aldo».

O principal problema para os judeus era a questão dos documentos. Era preciso criar documentos falsos, e normalmente se usavam nomes de pessoas residentes em áreas da Itália meridional, já libertadas, onde era mais difícil efetuar controles. Para tal fim, por indicação do bispo, colocaram-se em contato com um impressor declaradamente comunista, Luigi Brizi, que aceitou, envolvendo inclusive seu filho Trento, apesar dos riscos de tal atividade.

Dom Brunacci relatou muitas vezes como nasceu a organização. Na 3ª quinta-feira de setembro de 1943, após a acostumada reunião mensal do clero, que acontecia no seminário diocesano, o bispo o chamou à parte junto à capela e, mostrando-lhe uma carta da Secretaria de Estado, disse-lhe: «Temos de organizar-nos para prestar ajuda aos perseguidos e sobretudo aos judeus, esta é a vontade do Santo Padre Pio XII. Tudo deve ser feito com a máxima reserva e prudência. Ninguém, nem sequer entre os sacerdotes, deve saber».

Seguindo seus direcionamentos, o bispo procurou coordenar os esforços e sobretudo transmitir um exemplo aos fiéis. «Não se tratava apenas – afirmou recentemente o secretário de Estado de Bento XVI, cardeal Tarcisio Bertone – de organizar burocraticamente a busca dos dispersos e a assistência aos presos.»

Desta indicação geral e da diretiva de Dom Nicolini, nasceu em Assis o Comitê de Assistência aos Desalojados, um nome para uma atividade de alto risco. O convento das clarissas de São Quirico se converteu no quartel general da organização. Aqui – como nas hospedarias das coletinas (da família religiosa inspirada em Santa Clara de Assis), clarissas, estigmatinas (da família franciscana), religiosas capuchinhas alemãs e beneditinas de Santo Apolinário –, os perseguidos eram albergados até que se conseguisse encontrar para eles novos documentos de identidade, graças aos quais obtinham as carteiras de alimentação e podiam morar em um hotel ou em casas privadas.

Bruno Angeli, outro judeu foragido com a família, «foi o primeiro que nos falou de uma organização que ajudava de forma extraordinária todos os judeus que chegavam a Assis – relata Mirjam –, proporcionando inclusive documentos de reconhecimento com generalidades falsas, ou seja ‘árias’».

«A todos os conventos, inclusive os de clausura, foi enviada uma ordem de abrir suas portas aos perseguidos para hospedá-los. E nossa identidade religiosa era respeitada até tal ponto que, poucos dias antes, no final do jejum de Kippur, as clarissas do Mosteiro de São Quirico prepararam uma grande mesa com flores, querendo servir elas mesmas a comida que concluía a longa jornada de oração e penitência.»

O Pe. Vincenzo, do convento de São Damião, se aproximou deles e disse à família Viterbi: «Se tendes um amigo judeu, dizei-lhe que venha ao nosso convento e que vista o hábito dos frades». Os Viterbi já sabiam do que se tratava, pois era uma orientação do padre guardião, Nicacci.

Mas Mirjam e seus familiares não se refugiaram no convento, e sim em casas privadas. Sempre preparadas, contudo, para escapar imediatamente.

«Naquele período – narra Mirjam – eu controlava cada vez mais atentamente minha maletinha, sempre preparada em um lugar, especialmente quando pela tarde ouvia um caminhão deter-se em frente da casa, ou o ruído das botas no chão. Sabia o que havia acontecido a outros e o que podia acontecer conosco. Não me sentia culpada de estar viva; não; mas... até quando? Com aquelas malas alinhadas, eu creio que comecei a compreender então, talvez sem perceber plenamente, que na vida é preciso estar sempre dispostos a partir. Não se sabe para onde. Não se sabe por quê.»

Mas as coisas em um certo momento pareceram precipitar-se. Os nazi-fascistas intensificaram os controles.

E mais uma vez nas lembranças da menina emerge a figura de Dom Nicolini: «Meu pai foi pedir conselho ao bispo e pedir-lhe se, em caso de extrema necessidade, poderia acolher-nos no bispado, que já era refúgio de um incrível número de desalojados e perseguidos. Dom Nicolini sorriu, com aquela expressão bondosa sua: ‘Só restam meu dormitório e o apartamento – disse com espontaneidade –, mas posso muito bem ficar com o apartamento, e o dormitório eu deixo para vocês’. Papai, diante da oferta tão generosa, não se sentiu capaz de aceitar, obviamente».

A atividade de ajuda aos judeu não passou totalmente despercebida. Dom Brunacci foi preso pela polícia fascista, que o esperou em frente de casa. Foi levado a Perúgia pelo prefeito Rocchi e liberado cerca de dez dias depois, com a condição de que abandonasse Assis e fosse à Cidade do Vaticano. Aquela notícia criou inquietude entre os judeus refugiados na cidade, mas felizmente não aconteceu nada, até que chegaram os libertadores, na manhã de 17 de junho de 1944.

Mais de 300 judeus se salvaram da deportação graças ao bispo, aos dois sacerdotes e às pessoas que apoiavam à organização de diversas formas.

Acabada a guerra, Mirjam e sua família tentaram voltar a Pádua. «Nossa casa havia sido incendiada – recorda – e a meu pai não restou outra possibilidade senão desfazer-se dela, com um agudo sentimento de laceração. Foi reintegrado na Universidade e na Academia Paduana, mas não teve forças para voltar a morar em Pádua, ainda estando afetivamente muito ligado a ela. Reiniciou seu trabalho na Universidade de Perúgia. Com a incerteza de não saber onde estabelecer-nos, permanecemos em Assis durante 7 anos. Em 1950 nos transferimos a Roma».

Foi precisamente o pai de Mirjam, Emilio Viterbi, que expressou publicamente – como testificam outros documentos – a gratidão dos salvos: «Nós, os judeus refugiados em Assis, não nos esqueceremos nunca do que se fez por nossa salvação. Porque em uma perseguição que aniquilou seis milhões de judeus, em Assis não afetou nenhum».

Na cidade de São Francisco – escreve Mirjam Viterbi Ben Horin –, «o ‘Pax et Bonum’ se converteu para mim na saudação mais espontânea, não sabia que era precisamente como dizer ‘shalom’ em hebraico». Deste modo, confessa, «realizou-se um milagre de amor». Um milagre que tinha os rostos de Dom Nicolini e de seus sacerdotes colaboradores. Rostos que os olhos daquela menina não esqueceram.

Fonte; www.zenit.org


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