03.08.2008 - O fracasso da Rodada de Doha, que discutiu os rumos do comércio mundial e os impasses sobre a redução de subsídios agrícolas, contribui para agravar a situação de miséria dos hatianos. Contra a fome, lama virou comida no país, conforme o jornal britânico The Guardian em reportagem sobre tortas e biscoitos feitos de barro. O fato é confirmado pelo doutor em Relações Internacionais e diretor da Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma), Ricardo Seitenfus.
Em entrevista ao Terra, Seitenfus afirmou que o insucesso na OMC pode agravar ainda mais a situação do país mais pobre da América Latina. Afundado na miséria e sem primeiro-ministro desde abril, quando Edouard Alexis foi afastado do cargo em meio a protestos contra a alta nos preços dos alimentos, o Haiti conta com a ajuda internacional para atender às necessidades mais básicas da população.
Quadro que deve perdurar indefinidamente após o fracasso da Rodada de Doha. "O Haiti deverá permanecer nessa situação de grave penúria alimentar e necessitando continuar recebendo a ajuda pontual de outros países e de órgãos como o Banco Mundial, o que é absolutamente ineficiente, pois o que o país necessita é de uma agricultura de subsistência desenvolvida a partir de sua própria economia", disse Stenfuns.
Nos anos 1980, o Haiti, assim como outros países que tinham uma agricultura de subsistência, optou pela importação de alimentos em função dos preços baixos no mercado internacional.
"Com a liberalização do mercado agrícola, esses países tiveram mais interesse em comprar de fora do que produzir em suas próprias terras, pois o custo era menor. É o caso do Haiti, que antes produzia arroz, mas hoje importa".
Foi lá onde a elevação nos preços dos alimentos teve maior impacto, já que 80% da população vive com menos de US$ 2 por dia. Sem dinheiro para comprar comida, uma das soluções encontradas pelos haitianos foi comer tortas e biscoitos feitos a partir de lama.
Esses alimentos, apesar de não terem valor nutricional, enchem o estômago e "acalmam a fome". A venda dessas tortas acabou criando condições para o desenvolvimento de uma indústria lucrativa ainda que rudimentar.
Para Stenfuns, essa prática, antes eventual, se agravou muito nos últimos meses. "Nunca os haitianos tiveram excedentes de alimentos, mas a situação está mais grave hoje porque as pessoas simplesmente não têm dinheiro para comprar alimentos".
Obama: esperança ou protecionismo?
Muito haitianos acreditam que Barack Obama, caso seja eleito presidente dos Estados Unidos, pode abrir um novo capítulo e ajudar o país caribenho.
Na opinião de Seitenfus, a eleição de Obama seria algo extraordinário para a raça negra e pode representar uma esperança para o povo haitiano, já que os democratas sempre foram mais atenciosos com o Haiti. No entanto, o partido do senador por Illinois é tradicionalmente mais protecionista dos que os republicanos em questões agrícolas, o que pode prejudicar o desenvolvimento de uma agricultura haitiana.
"Provavelmente os democratas vão se preocupar com projetos sociais e com cooperação técnica, mas o protecionismo agrícola pode atrapalhar um pouco, já que devem continuar fornecendo ajuda alimentar, o que inviabiliza a agricultura nacional", analisou.
Cotidiano difícil
Seitenfus, que também é membro da missão jurídica da Organização dos Estados Americanos (OEA) e consultor do governo brasileiro para questões do Haiti, onde esteve em cinco oportunidades, destacou a capacidade do povo do país em sobreviver em meio ao caos.
"Há uma coisa que eu considero ouro no Haiti: o povo. Eles vivem de maneira digna e são extremamente nacionalistas, orgulhosos do seu passado". Sem eletricidade, a vida no país é diurna, com milhares de pessoas circulando pelas ruas vendendo carvão, laranjas e cabras, entre outras coisas, segundo ele.
"É uma luta constante pela sobrevivência que convive com uma ausência de violência. Há um contraste extraordinário de uma massa de pessoas que lutam para sobreviver e que ao mesmo tempo não se sentem ameaçadas por roubo", contou.
"Quando o dia amanhece, eles enfrentam mais um desafio para permanecer vivos. E às 21h já não há mais ninguém nas ruas. Mas quando não conseguem vender tudo o que tinham para vender, permanecem nas ruas com uma vela acesa, principalmente as mulheres".
Seitenfus também chamou a atenção para a escravidão infantil, assunto muitos vezes tratado como uma questão cultural. "Há mais de 250 mil menores trabalhando como escravos no Haiti. São geralmente filhos de mães sem condições que são doados a outras famílias. Essas pessoas transformam as crianças em escravas dos seus próprios filhos, muitas vezes escravas sexuais".
Outra questão dramática, segundo Seitenfus, é a situação das prisões, pois 95% dos presos estão sob um regime chamado "detenção provisória prolongada". Ou seja, não foram processados. "Não existe sistema judicial, é um caos generalizado em tudo".
Redação Terra
--------------------------------------------------------------------------------------------------------
Lembrando...
Sinal dos Tempos: A pobreza é tanta no Haiti que até barro vira alimento
29.05.2008 - Em sua segunda visita ao Haiti, o presidente Lula prometeu ampliar a ajuda ao país mais pobre das Américas, além de aumentar o contingente brasileiro nas forças de paz da ONU.
O presidente do Haiti, René Preval, aproveitou a visita para pedir mais força policial e menos militar. Segundo Preval, a criminalidade ainda é um problema grave.
A periferia de Porto Príncipe é o retrato de um país que passou por golpes militares e conflitos armados, 80% da população do Haiti vive com apenas US$ 2 por dia.
Em cada três haitianos, dois não têm emprego formal. Um homem diz que falta dinheiro para comer e pagar a escola dos filhos.
As feiras no Haiti são sempre cheias. É possível se encontrar de tudo. A iguaria mais interessante aqui é este biscoitinho aqui o "tê" que é feito de argila, manteiga e sal.
É isso mesmo. A pobreza é tanta que até barro vira ingrediente. O vendedor prova um pedacinho e afirma: "É bom".
No mês passado, o aumento no preço dos alimentos provocou violentas manifestações nas ruas de Porto Príncipe. Seis pessoas morreram e o primeiro-ministro caiu. O protesto chegou perto do Palácio Nacional, que foi protegido pelas tropas da ONU, lideradas pelo Brasil.
As tropas brasileiras estão no Haiti desde 2004, tentando garantir a paz e estabilizar o país. Mas só a presença ostensiva das tropas não resolve.
"Para o Haiti ter paz, falta desenvolvimento, falta criação de emprego, e não é de altíssimo nível, empregos elementares. Para que as pessoas possam ter um salário mínimo", fala o general Carlos dos Santos Cruz, comandante da Missão da ONU - Haiti.
O homem que chefia sete mil militares de 18 países é um gaúcho, o terceiro brasileiro a comandar a missão no Haiti.
Os militares brasileiros são trocados a cada semestre. No momento, estão no Caribe, militares do Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Eles são responsáveis também por distribuir a comida e fazer ações sociais nos bairros mais pobres.
Balões, cordas e a bola de futebol têm provocado o que é raro por aqui: sorrisos.
Fonte: Jornal da Globo